quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Sobre crianças, Rússia, tenacidade e meritocracia

Um órfão de seis anos, russo, será adotado por um casal de italianos. Esse é o começo de O pequeno italiano (Italianetz, 2005), do diretor russo Andrey Kravchuk. Vanya Solntsev, o sortudo de um orfanato caindo aos pedaços na Rússia contemporânea, passa a ser chamado então de “pequeno italiano”. Ele foi vendido, como várias outras crianças, através da mediação de Madam, mulher inescrupulosa e obstinada que representa a única forma de sair do orfanato. Demorará ainda dois meses para que o pequeno vá embora com seus pais adotivos e, nesse tempo, a alegria segura de estar indo para um lugar melhor dá espaço a várias dúvidas. É que a mãe biológica de Mukhin – um garoto do orfanato que havia sido adotado – apareceu em busca de seu filho. Como não o encontrou, suicidou-se. As crianças do orfanato não conseguem parar de pensar no caso; no fundo, elas têm esperança de que suas mães os encontrem.
Tocado por esse fato, Vanya começa a pensar se sua mãe não estaria à sua procura também. Seus amigos tentam dissuadi-lo da idéia, mas ele resolve aprender a ler para descobrir de onde veio e onde está sua mãe. Aqui entra em cena Irka, adolescente que passa o filme todo descendo dos caminhões de seus clientes – ela é uma “boneca”, gíria para prostituta – e ainda arranja forças para ser solidária. Bonita personagem, arisca e livre. É Irka que vai ensinar Vanya a ler. Depois ela rouba o dinheiro de seus amigos e compra as passagens do pequeno italiano para o seu antigo orfanato, onde ele pretende descobrir mais sobre sua mãe.
O elenco conta com Kolya Spiridonov, o protagonista Vanya, e as outras crianças, que em sua maioria são realmente órfãs. Italianetz foi lançado em 2005 e marca a estréia de Andrey Kravchuk à frente de longas-metragens. O filme recebeu mais de 30 prêmios internacionais, entre eles o Grande Prêmio do Deutsches Kinderhilfswerk de melhor filme, no festival de Berlim de 2005. Integrou a seleção oficial do Festival de Toronto, em 2006, e foi o representante oficial da Rússia na tentativa de conseguir uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, também em 2006. Chegou ao Brasil apenas em agosto do ano passado.
A idéia de O pequeno italiano surgiu no ano 2000, quando havia muitas crianças nas ruas da Rússia tentando ganhar a vida vendendo jornais, lavando carros ou fazendo outros tipos de trabalho manual. Andrey Kravchuk começou a pensar em fazer um filme sobre o tema – que alias já lhe era caro, pois havia feito um documentário sobre o assunto em 1994 – e conversou sobre a idéia com Andrei Romanov. Romanov se lembrou de uma notícia da época sobre um garoto órfão que decidiu procurar a mãe e para isso aprendeu a ler e escrever, fugindo pouco depois do orfanato onde vivia. Esta matéria de jornal foi a base para a história de O pequeno italiano.
Andrey Kravchuk nasceu em 1962, em São Petersburgo e é diretor de cinema e televisão e também roteirista. Em 1992 largou a faculdade de matemática e foi estudar cinema no Instituto de Cinema e Televisão, onde conheceu Semyon Aranovich, diretor que considera seu mentor. Entre 1992, ano em que começou a trabalhar com cinema, e 2005, Kravchuk escreveu e dirigiu 12 filmes, dos quais podemos citar os documentários Deti v Strane Reform (Children in the Country of Reforms), de 1994, sobre a problemática das crianças órfãs na Rússia, e Semyon Aranovich. Poslednii Kadr (Semyon Aranovich. The Final Shot), de 2002, em homenagem a esse diretor. Entre os diretores que o influenciaram estão, além de Aranovich, Dinara Asanova (Teenagers e Woodpeckers Don’t Get Headaches) e Vittorio de Sica (com Ladrões de Bicicleta, de 1948).
Uma boa surpresa de Italianetz é a interpretação do garoto Kolya Spiridonov, que faz o pequeno italiano. Ele desenvolveu até “cacoetes” para a personagem, que dão muita verossimilhança e naturalidade à atuação. Andrey Kravchuk contou, em entrevista disponível no site oficial do filme (www.sonyclassics.com), que a produção havia “descoberto” Kolya num curta e achou que era dele que precisavam. Kravchuk disse que achou que o charme do garoto era intenso para passar despercebido, apesar de ele ser terrivelmente nervoso, falar em voz baixa e não conseguir memorizar suas falas. A produção continuou procurando outras crianças, mas sempre voltavam a Kolya, até que Kravchuk resolveu correr o risco e começou a gravar com o pequeno. Segundo Kravchuk, foi quando viu as primeiras cenas do garoto que teve certeza de que havia feito a escolha certa. E essa foi também foi a opinião dos jurados dos três festivais que premiaram Kolya Spiridonov por sua atuação em O pequeno italiano.
Logo no início do filme, um diálogo anuncia qual será a tônica ao abordar a Rússia. “Essa é a Rússia”, diz Roberto, o italiano, mostrando uma paisagem cinza e desoladora. “Um lugar frio”, complementa Claúdia, esposa dele. O pequeno italiano mostra um país pobre, com grandes diferenças de classe e muita corrupção. No entanto, não há saudosismo com relação à Rússia soviética. Há, talvez, uma tentativa de dizer que os problemas vêm se arrastando desde aquela época. O sobrenome de Vanya, Solntsev, traz na palavra uma referencia ao sol e na história da União Soviética a referência a uma criança protagonista de uma novela do realismo socialista chamada O filho do regime, de Valentin Kataev, escrita em 1944. O filho do regime é um órfão adotado pelo exército e transformado num militar de elite. Outro elemento que dialoga com o passado soviético é a ameaça de Madame de mandar Vanya para um campo de trabalhos de forçados – herança do estalinismo –, apesar de que o próprio nome da rua onde se localiza o orfanato – Belomorkanal – é, por acaso, o nome de um dos primeiros projetos de “reeducação pelo trabalho” do companheiro Stálin. Também a rua do antigo orfanato de Vanya lembra o militarismo da URSS – Frunze é o nome do “pai” do Exército Vermelho. O diretor do orfanato da rua Belomorkanal é um sonhador da década de 60 que queria ser como Iuri Gagarin e hoje está desiludido, gastando seu tempo a beber e rememorar músicas da Rússia Soviética com seus amigos.
O filme é uma mistura de drama com aventura. A fuga de Vanya do orfanato e todos os clichês que o colocam sempre muito perto da megera Madam fazem a adrenalina subir e, quando se percebe, já se está torcendo pelo garotinho. A trilha sonora, feita por Alexander Kneiffel, é muito boa. Parece que durante toda a história estamos diante de uma caixinha de música entristecida – invoca infância, magia, melancolia e fragilidade. Às vezes a música se torna mais densa, chegando a dar medo. A música ajuda a dar uma sensação de que há dois mundos: o das crianças e o dos adultos. Vanya é uma criança no mundo dos adultos, embora com o avançar da noite vá ganhando força, auto-confiança e tenacidade. Ele pergunta várias vezes como chegar a Rua Frunze e as pessoas simplesmente não lhe respondem ou encetam uma conversa sem levar em consideração o que ele havia indagado. Há incomunicabilidade e indiferença.
Porém o mundo não é tão maniqueísta assim. Não há só os adultos mandando e as crianças obedecendo. O poder, entendido como uma teia de relações, permeia todas as instâncias da vida, estabelece-se entre todas as pessoas. Enquanto o diretor do orfanato controla todos da casa (crianças e adolescentes), outras relações de opressão são engendradas. É que os adolescentes mandam nas crianças: elas trabalham pra eles e devem-lhes obediência. Mas se onde há poder, há resistência, como disse o filósofo Michel Foucault, acontecem coisas como a fuga de Vanya e o roubo do dinheiro dos adolescentes para que pagasse suas passagens.
Há que se fazer críticas à construção dos personagens, que é muito caricatural. Madam é uma completa megera, uma bruxa, uma mulher que prefere o dinheiro ao amor e que vende criancinhas. Grisha, o motorista dela, é uma pessoa sem vontade própria, um “pau-mandado”, na nossa gíria cearense (apesar de sua mudança no fim do filme, que mesmo assim foi às escondidas). O diretor, um bêbado desiludido. Os garotos do trem que roubam o casaco de Vanya são os mais caricaturais de todos – “acho que esse casaco vale uma cerveja”. Também considero pouco verossímil a própria personagem de Vanya, apesar do momento em que ele enfrenta Grisha e chora; justamente a hora em ele se diz forte é o momento em que cai aos prantos. No entanto, o diretor Kravchuk se sai bem ao rebater as críticas que dizem respeito à Vanya: “eu entendo que as ações de nossa personagem têm de parecer absurdas, porque ele não foi guiado pela razão, mas pelo coração; não por uma capacidade de se comprometer, mas por uma necessidade extrema. Ele não quer, como muito de nós, simplesmente uma vida segura. Este garoto é um verdadeiro herói, no sentido existencialista, como nas obras de Camus e Sartre”.
Tenho medo de o filme representar uma ode à meritocracia, na medida em que desconsidera – ou minimiza, é melhor – as condições reais de vida de Vanya. Talvez os russos, fartos de tanto marxismo, estejam mesmo querendo considerar mais a força de vontade individual. Compreendo perfeitamente o incentivo a autoconfiança e discordo dos posicionamentos positivistas do marxismo, entretanto a meritocracia apresentada de tal maneira – redentora - é parte do pensamento liberal. E a Rússia liberal, até onde percebo, também está sendo criticada n’O pequeno italiano. O final feliz reconforta, depois de tanta melancolia e imagens cinzas, mas não tira do peito a dor pelas outras crianças, já que a história de Vanya é, segundo um de seus amigos do orfanato, uma em milhão.

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