quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Os incomodados que se retirem


Incomodado. É assim que sai um espectador da sala de cinema depois de assistir o novo filme de Fernando Meireles, Ensaio sobre a cegueira (Blindness, 2008). Incomoda ver a fragilidade humana diante da deficiência provocada por uma epidemia repentina de cegueira branca que acomete uma cidade. Incomoda ver a fragilidade do nosso sistema de governar, pensar e viver diante do inesperado. Incomoda ver que, no escuro (ou no branco total) os homens mostram o que de fato são: animais.
Todos esses incômodos não são novidade para quem leu o livro homônimo do escritor português ganhador do prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, no qual se baseia o filme. Agora, o incômodo de quem sai da sala de cinema é de outra natureza. É um incômodo físico. A iluminação e os efeitos de luz que se sucedem durante a projeção causam uma sensação de mal-estar. Agridem os olhos. O diretor parece querer provocar uma cegueira temporária na platéia tentando mostrar os acontecimentos sob o ponto de vista dos personagens, que são cegos. E é claro que isso incomoda.
Essa escolha da direção difere em muito com a do autor no romance original. Na literatura, o leitor tem um lugar de visão privilegiado, ele acompanha a onisciência do narrador em tudo. Por isso a leitura é clara, limpa. No filme, ocorre quase o inverso, além do espectador ser colocado diversas vezes no nível limitado de visão dos personagens, os efeitos de luz, a fotografia (de César Charlone) e a forma nem sempre linear de contar os fatos provocam um clima sombrio e de certo suspense.
Durante a produção do filme, Meireles escreveu um blog no qual conta sua experiência. Lá ele diz que a produtora americana considerou as primeiras versões muito fortes e alegou que o público não estaria preparado para isso. Está explicada a forma eufêmica como foram retratadas algumas cenas importantes. Usando efeitos de embaçamento e uma trilha sonora suave, algumas cenas lembram O jardineiro fiel (The Constant Gardener, 2005) também dirigido por Meirelles e distanciam-se do estilo que o mesmo diretor apresenta em Cidade de Deus ( 2002), seu filme mais premiado. É claro que não há um véu em tudo, mesmo porque a edição é de Daniel Rezende (Cidade de Deus e Tropa de elite). Mas, ao aceitar as exigências dos produtores, Meirelles colabora mais uma vez com o falso moralismo americano e deixa de fazer o que sabe melhor: retratar a crueza humana como ela é, coisa que os brasileiros já se acostumaram a ver.
É claro que não podemos esquecer que literatura e cinema são duas linguagens completamente diferentes e fazer a adaptação de uma obra da literatura para as telas não significa nunca fazer uma mera tradução, é uma recriação. Como peça independente do livro o filme cumpre bem seu papel. O roteirista Don Mckellar (que atua no filme como o Ladrão) conseguiu fazer uma boa transposição de uma linguagem à outra.
Também cumpriu muito bem o seu papel a atriz Julianne Moore (Fim de Caso, Longe do Paraíso e As Horas) e o ator Gael Garcia Bernal (Diários de motocicleta). As atuações deles (principalmente quando aparecem na mesma cena) são o ponto alto do filme. Eles carregam o filme nas costas: ela consegue transmitir a angústia de alguém que vê, mas preferia não enxergar, ele o instinto animal do homem que não vê, mas age como se enxergasse. As atuações de Mark Ruffalo e Alice Braga ficam a desejar, ele não convence como cego e ela parece repetir a mesma personagem de Cidade Baixa, sem novidades.

Trailer do filme
Entrevista com Saramago à Folha de São Paulo
Entrevista com Fernando Meireles no programa Roda Viva da TV Cultura

Waldenia Marcia

Nenhum comentário: